segunda-feira, 5 de setembro de 2011

11. SIGNIFICADOS POSSÍVEIS DA TERRA DO SALVADOR EM TEMPOS PRESENTES DE AXÉ

Quais significados configuram essa terra tão decantada nesses anos de história que adentram o novo século? Para uma grande maioria de brasileiros e não brasileiros, dentro e fora do Brasil, Salvador é significado de Bahia. Esse estado da Federação, ou essa identidade cultural aparece na mídia via Salvador. Fora disso, quando muito, configura-se nas novelas e em outros programas que trazem caricaturas do sertanejo como baiano e nordestino. A multiplicidade de Bahia e baiano não cabe em reducionismos simplificadores e uniformizadores como temos constatado na mídia e no mercado.

Nesse pequeno ensaio, quero tratar do contexto festivo de Salvador como significado de Bahia em seus 462 anos. Penso em duas referências mobilizadoras para refletirmos sobre isso.

O baiano Albergaria, em sua perspectiva anarcoantropológica propõe três marcos culturais interessantes para pensarmos a Bahia no século XX: a Bahia do imaginário de Jorge Amado, a Bahia dos Novos Baianos, da Tropicália e a Bahia do Axé. Segundo ele, a 1ª Bahia é aquela dos pescadores com chapelões de palha, das morenas brejeiras, das putas dos becos e vielas do Maciel, das puxadas de rede em Itapuã, de Cayme, Mario Cravo, Verger, Zélia Gatai, Dinha do Acarajé e do próprio Jorge Amado; uma Bahia da literatura, dos romances e tragédias tropicais. A 2ª Bahia á dos Novos Baianos, dos Doces Bárbaros, de Gil, Caetano, Gal, Bethânia; uma Bahia que se torna midiática, que ganha a comunicação de massa. A 3ª é a Bahia do No Stress, da terra da felicidade eterna, da curtição sem limites, onde o Axé, mais que um estilo musical, torna-se um estilo de vida, de consumo, um mercado promissor.

O francês Michel Maffesoli, sociólogo do presente, afirma que vivemos a presentificação da vida, o agora, onde não há mais espaço para o saudosismo do passado nem para a utopia do futuro. Tempos em que novas formas de solidariedade desconstroem os modelos vigentes na modernidade, centradas não no racionalismo, mas na emoção, no afeto e no prazer. Provoca-nos ainda, para pensarmos a Modernidade através do mito de Prometeu, deus do trabalho, da razão, da seriedade e pensarmos também o que ele classifica como Pós-Modernidade, via o mito de Dionísio, a desordem, a festa, o hedonismo. O sociólogo aponta que nesse tempo presente o trabalho tem seu lugar, mas o prazer, a festa, a emoção buscam o retorno de elementos que a Modernidade julgava ultrapassados, configurando um novo humanismo, juvenil e criativo, através de uma espécie de juventude eterna.

É sobre aquela 3ª Bahia e dessa presentificação hedonista que teço a rede de possíveis significados da Soterópolis em seu 462º. aniversário. E não creio que possa fazê-lo fora da perspectiva das ambivalências e da complexidade.

As festas do calendário da Terra da Felicidade ao mesmo tempo em que geram empregos, mesmo que temporários, informais e não-qualificados, promovem significados de subdesenvolvimento quando vemos os deslocamentos de famílias de suas residências na periferia e nos bolsões cravados pelos corredores da cidade, para os circuitos das festas instalando-se desinstaladamente em calçadas, meio-fios, com beliches, colchonetes, papelões, cobertores, inseridos nas mais nefastas condições de insalubridade.

Os trios, blocos e camarotes frequentados e habitados fugazmente por abastados (e até endividados) abrilhantam, sofisticam e embranquecem as festas e contrastam com os ambulantes, cordeiros e gente de todo tipo na pipoca que escurecem os eventos. Embranquecimento e escurecimento não são inocentes, não acontecem ao acaso, são forjados politicamente no social e revelam diferentes aspectos segregatórios que caracterizam essa sociedade reinterpretada nessas festas. De certa forma, elas reproduzem essas segregações.

Seus ídolos e heróis, artistas e profissionais de muito carisma e competência para aquilo a que se propõe demonstram profissionalização e criatividade animando a massa, ao mesmo tempo em que se transformam em ícones de mercado para consumo dos mais diversos produtos, inclusive impróprios para menores. Muitos se renderam à visibilidade midiática e aos cachês estratosféricos geradores de notoriedade que promovem afetações do tipo “sou criador de... e por isso eu posso e faço o que quiser”, “eu sou um presente para o povo”...

Sobre o carnaval especificamente, na saída de um dos grupos afro no Pelourinho (que realizava apresentação espetacularmente maravilhosa e vibrante), o governador fazia seu discurso com os viciados jargões sobre maior festa do mundo: baixos índices de violência, festa democrática e da diversidade, que gera trabalho e tira crianças da rua, enquanto por entre a massa empolgada da qual eu fazia parte, crianças “pretas, brancas, quase pretas e quase brancas” em situação de risco em todos os sentidos, disputavam acirradamente latinhas de alumínio e escarafunchavam restos de salgadinhos e outros petiscos deixados por turistas e locais.

O Axé como estilo de vida, como um jeito de ser e estar no mundo não demonstra lastros com o passado e nem vislumbra futuro. O passado é, no máximo, a música do ano anterior. E o futuro, o próximo trio que lá vem. O caro consumo desse estilo se assenta num forte hedonismo, na erotização da sexualidade, no prazer, na fugacidade e na perspectiva escópica (vejo e preciso ser visto para existir) em diferentes níveis, dos Vips aos Pipocas. Nessa lógica a vida tem de ser vivida intensamente agora, entorpecida por destilados, fermentados, alucinógenos e outros psicoestimulantes.

O POP de Salvador é abrangente/limitador: ele absorve toda e qualquer tendência. Brinco com isso, afirmando que se Beethoven fosse vivo, certamente seria convidado por uma das estrelas do POP soteropolitano para reger a 9ª. Sinfonia num trio elétrico no carnaval. Todos a ouviriam, interagiriam e entretanto, a ressignificariam tranformando-a numa levada de samba-reggae, pagode ou cavalgada. A diversidade é reconhecida até cair no liquidificador POP onde se AXÉdifica e passa a ser consumida. Torna-se uma espécie de diversidade do mesmo. Isso é estratégia para consumo, hegemonia de uma produção local transformando o global, conservadorismo por transformar o diverso em algo familiar e definir a diferença a partir de si, liberalidade por entender o diverso como quiser e transformá-lo no que quiser ou quê?
As propostas e produções diferentes do paradigma do Axé tem espaço mas não visibilidade. Aparecem como formas alternativas de “cultura” e entretenimento que se apresentam em espaços e horários de visibilidade um tanto nublada.

Essa Bahia do Axé gera visibilidade, recursos e emprego, mesmo que de qualidade duvidosa. Isso é notório e também comprovado nas estatísticas. Entretanto, não gera distribuição de renda. Não altera e perpetua com novas fantasias, ou melhor, novos abadás o modelo que concentra renda, praticado há séculos nesse país. A Bahia do Axé oferece possibilidades concretas de presentificação dionisíaca a consumidores ávidos por possibilidades hedonistas. Não basta só querer descumprir ritos da burocracia cotidiana, desopilar e extravasar. Há que se praticar tudo isso com visibilidade transmitida midiaticamente para o mundo. É preciso bater recordes de beijos na boca, de latinhas consumidas, de gente por metro quadrado nas ruas. A propósito, onde todos os recordistas urinam e defecam durante esse período?

Há muito mais na Bahia, em Salvador, do que a Bahia do Axé. Há um universo complexo, original de intensa criatividade que insiste em continuar existindo para além do enquadre da ditadura do prazer e da alegria e que também, promovem alegria e prazer. No mínimo, festas que se intitulam “da diversidade”, da “democracia”, “popular”, deveriam trabalhar melhor com horários, espaços, visibilidade midiática e promoções fazendo valer tal discurso. A proposta da TVE Salvador pode ser uma ótima referência nesse sentido mostrando a multiplicidade de expressões das festas Baianas, não só soteropolitanas.

Será que essa cultura, a do Axé e a do Presentismo Hedonista já se consolidou como significado hegemônico de Bahia, de Baiano? Será que queremos ser vistos, reconhecidos, subjetivados por esses significados, tanto na aldeia global como para nós mesmos baianos e não baianos que vivem e interagem aqui? É possível estabelecermos uma única identidade para a multiplicidade de Salvador, da Bahia, do Brasil? Não creio nisso.

Congratulo-me com esse povo bacana que é festeiro sim, que gosta do prazer sim, que leva a vida de seu jeito, sim. Mas, que não é só Axé Para o Agora, não! Tem muita história e muita perspectiva de futuro promissor, principalmente nas artes, na música, sim! Que esse povo e o governo eleito por ele (adormecido em berço sem oposições) olhem para si e se vejam na teia de significados possíveis praticados também com trabalho, seriedade, competência, e muitas gingas que transpassem essa fronteira de significado único e interaja na multiplicidade.

Parabéns Salvador!

Zelão
zelosmegatrend@uol.com.br

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