sexta-feira, 26 de agosto de 2011

10. HIBRIDAÇÕES SOTEROPOLITÂNICAS

Dentre as tantas reflexões urgentes na contemporaneidade penso que cultura seja uma das mais instigantes. Ainda nos deparamos com arautos da “verdadeira cultura”, da “pureza cultural”, da “cultura correta” e com embaixadores da “cultura nacional”, da “cultura ocidental” ou com paladinos doutos definindo o que “é” e o que “não é” cultura, quem “produz” e quem “não produz” cultura.

Essas tensões estão presentes nas mais diversas expressões da comunicação cotidiana, em conversas corriqueiras, programas de TV e rádio, mensagens em outdoors, notícias e matérias em jornais, postagens em blogs sites entre outros. Parece que precisamos nos decalcar em modelos que aprendemos a significar como padrão para perceber e ver o outro. Se outro for igual, tudo bem! Estamos tranquilos. Mas se outro for “outro” estaremos reconhecendo a diferença e isso pode se constituir em potencial ameaça a igualdade que sentimos com os outros-iguais. Parece haver uma necessidade de definirmos, enquadrarmos, estereotiparmos, subjetivarmos o “outro” como inferior, não correto, não verdadeiro, não puro, fora do modelo que consideramos oficial e, portanto, algo que “não é”.

Refletir sobre cultura é questionar esses modelos, essa forma de vermos-nos como iguais e diferentes, pois estamos no universo das intersubjetividades, no universo dos significados, na linguagem, no discurso que promove o acesso à materialidade. Tais questões nem sempre aparecem objetiva e claramente, muitas vezes emergem sutilmente, subliminarmente, ocultamente, sem despertar necessidades ou desejos de questionamentos.

Penso que lidar com cultura requer criticidade para desvelamentos, desconstruções daquilo que é posto como verdade absoluta, aquilo que os teóricos desse campo denominam naturalizações. Em cultura, as desnaturalizações são estratégias para não ficarmos acobertados por “mantos da verdade”, “mantos do bem”, “mantos da igualdade”, “mantos que preservam nosso verdadeiro alguma coisa”. Em cultura há que se desacobertar para tratarmos dos significados produzidos nas relações e optarmos sobre se queremos ou não adotá-los para superarmos condição de quase reprodutores de significados definidos por alguém, por alguns que têm a pretensão de tornarem-se referência (de verdade, de correto, de pureza) e desprezar e as diferenças.

É recorrente em minhas reflexões a provocação do sociólogo Boaventura de Souza Santos sobre esse tema: temos de ser diferentes quando a igualdade quer nos homogeneizar e temos de ser iguais quando as diferenças querem nos inferiorizar. Sou pelas diferenças. Durante muito tempo fui pela igualdade, acobertado por significados não refletidos, não desnaturalizados. Queria tratar dessas questões sem saber, sem reconhecer sua complexidade e, portanto, a impossibilidade de tratá-las sem tensões.

Tratar da cultura é lidar com múltiplas tensões da ordem do social e do político. É lidar com a diferença como potência para superarmos posturas que classifico como umbigóides (autocentradas, ensimesmadas, que só têm a si como referência). Tratar da cultura é interagir com significados que estão em constantes embates e negociações. Nessa perspectiva não aceitaremos culturas “superiores e inferiores”, “cultura boa e cultura ruim”, “cultura certa e cultura errada”. Temos de conceber cultura como tudo aquilo que é produzido pelos humanos no social. Desde suas ideias sobre a vida, o mundo, sobre as coisas, até sua produção material. Tudo aquilo que afeta as subjetividades (sua forma de ver e sentir o mundo) e precipita suas ações. Tanto Bach, quanto Chiclete com Banana produzem significados culturais, produzem cultura. Tanto a decantada Paris, na França, quanto o sofrido Alagados, em Salvador, produzem significados, produzem cultura por que afetam subjetividades tornando-a isso ou aquilo. O consumo é uma modalidade de cultura nesses tempos de promoção de significados imagéticos e midiáticos do Capitalismo Tardio.

Não quero defender a aceitação acrítica de significados em nome de um relativismo acomodado, numa perspectiva multicultural passiva. Prefiro o Multiculturalismo Crítico, de Peter MacLaren. Esse canadense que discute currículo e cultura, afirma que opções devem ser tomadas, no entanto, refletindo e desvelando tais significados, desacobertando-os de seu sentido único, trazendo tensões em embates e não negando a existência, o não-reconhecimento daquilo que não é minha perspectiva. O discurso multiculturalista por si só acaba sendo uma grande colcha de retalhos onde parece que a multiplicidade de significados não é alterada e não se permite interações modificadoras mutuamente; mantém as diferenças nos quadros do “ado, a-ado, cada um no seu quadrado”! Ao contrário, criticidade com as tensões em embates podem gerar Respeito e não Tolerância com a diferença.


Tentando articular cultura e cotidiano na perspectiva que discorri até agora, trago uma provocação que me mobilizou fortemente nas tramas cotidianas da teia soteropolitana para seguirmos na reflexão sobre cultura.

Num domingo desses, sem relógio e sem pressa, procurando algum lugar para almoçar, acabamos assentando numa churrascaria, na Boca do Rio, bairro da Soterópolis. Enquanto fazíamos o pedido e aguardávamos os pratos, fui me apercebendo dos significados em tensão que se configuravam aquele espaço.

O local intitulava-se churrascaria. No entanto, fomos surpreendidos pelo garçom que nos oferecia pizzas no sistema de rodízio, de múltiplos sabores: queijo coalho, banana, carne de sol, brigadeiro entre outras; a churrascaria oferecia, ainda, massas: lazanha, caneloni, espagueti, fetuchine, em molhos diferenciados. Na sequência, nos ofereciam carnes variadas, típicas de um rodízio, calabresa, maminha, costela, picanha, lombo, frango, coração...

O amplo espaço onde estavam dispostas as mesas tinha as paredes decoradas com painéis de grandes dimensões que traziam paisagens rurais do Sul do Brasil, quadro com embarcações típicas, ancoradas em uma baia chinesa, ladeado por outros quadros com paisagens tropicas do Nordeste do Brasil.

À medida que percebia essa diversidade, aguçava-me mais ainda a percepção para a diversidade que acontecia nessas duas horas em que interagimos nessa arena de significados em embates.

Os garçons revelavam sua mestiçagem “biológica”, no tom da pele, nas características dos olhos, bocas, expressões em seus visuais mulatos e mamelucos, servindo mesas ocupadas por “loiras de farmácia”, “brancos com cabelo carapinha”, “negros”, garotos com “cabelos multicores”, uma pequena família japa” (como sei se são realmente japoneses? Será que apenas pelos olhos pequenos e puxados?) e por nós, eu e minha companheira, paulistas do interior e meus filhos, um nascido em Teixeira de Freitas no Interior da Bahia e outra, soteropolitana, aparentando traços de etnias europeias e indígenas. Tudo isso, aparente. E as outras referências que não observamos que não são tangíveis? Deveriam ampliar ainda mais o cenário e atores da diversidade. E como toda essa gente se vê e se sente? Com quais identidades se definem? Com quais identidades são definidos? As identidades são fixas ou têm mobilidade? Podemos celebrar as identidades como quer o sociólogo jamaico-britânico, Stuart Hall? Como tais diferenças se comportam nessa arena de significados? Há interações entre elas? Há alterações entre elas, Será que há pureza entre elas? Qual delas é a “verdadeira cultura”, a “cultura correta”, a “cultura superior” que define todas as outras?

Canclini, antropólogo argentino, referência importante para tratarmos de cultura nessa perspectiva e, em especial, das culturas latino-americanas, auxilia-nos para essa reflexão quando traz o conceito de hibridação cultural. Nosso antropólogo afirma que esse conceito define um conjunto de processos de trocas mesclando culturas, ou formas culturais, tanto a mestiçagem racial ou étnica, como o sincretismo religioso e outras maneiras de fusão cultural, como a musica. A hibridação não é um fenômeno novo, sempre que ocorre o contato entre culturas há empréstimos de elementos entre elas, há afetações entre elas, há alterações entre elas. Na contemporaneidade, a ampliação de possibilidades de viagens, de relações entre as culturas e as indústrias audiovisuais, os processos migratórios entre outros, incitam ampliação do acesso de umas culturas aos repertórios de outras. Essa relação não é harmônica, pacífica, apenas enriquecedora, é sim, bastante conflituosa. Hibridação é apenas uma das modalidades de interculturalidade, fenômeno mais interessante que a multiculturalidade. Enquanto na multiculturalidade pode parecer que as diferenças estão ali, estáticas apenas, no segundo há movimento, deslocamentos, empréstimos, recusas, ressignificações. Interculturalidade é um campo conflituoso e contestado.

Nesses cenários, estruturas e práticas que existiam isoladamente afetam-se a ponto de plasmarem novas estruturas, conceituais, materiais ou práticas. São combinações nem sempre previsíveis, capazes de nos deslocar de posturas umbigóides e de posições privilegiadas para ver os “outros”.

Aquele espaço se configurava em algo para além da churrascaria, onde se plasmava interculturalidade.

O Brasil é um grande palco para esse tipo de interculturalidade. A nossa Soterópolis, por suas condições históricas e significados que a fazem possuir notoriedade é uma grande arena desses embates, apesar de grupos segregadores tacitamente naturalizar a balela de “manto da democracia racial” que mais fortalece a permanência de um poder que se quer saneado de impurezas, sentido e vivenciado em suas esquinas.

A soterópolis é mestiça, é hibrida! Graças aos deuses e aos humanos que a significam e a ressignificam!

A propósito, foi um almoço saborosamente interessante!

Zelão
zelosmegatrend@uol.com.br

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