sábado, 24 de setembro de 2011

12. REFÉNS DE NOSSO BUNDAMOLISMO

A partir de agora, eu e minha companheira somos parte das estatísticas sobre violência nesse país latino americano, emergente, festivo, que vive da auto-imagem decrépita de se achar cordial e de uma identidade de povo do futuro, forjada talvez, como auto defesa para as mazelas da pobreza e da miséria que “até há pouco” nos caracterizava.

Vivemos o drama de termos sido assaltados coletivamente, numa farmácia, em pleno cair da tarde, nublado e abafado pelo mormaço da soterópolis.

Dois caras e uma garota, não mais de 20 anos, pessoas comuns, tensos nas ações e racionalmente objetivos para submeter a todos que ali estavam, anunciaram a ação! Parte de nós para o balcão e outra para um canto, atrás das caixas ordenados para que sentássemos no chão. Armas em punho e em guarda (um portava dois 38, um prateado, novíssimo e reluzente e mais um, preto. O outro, com outro 38 surrado e inquieto nos movimentos de sua mão, também, preto), intimidando, ameaçando e “tranquilizando-nos”, vermes acuados com vertigens, tremedeira, pavor e quase sem controle dos esfíncteres (eles também, com certeza estavam assim, só que no controle total da situação!). Em menos de 5 minutos limparam-nos de nossos pertences e valores em espécies, enquanto a outra protagonista da ação que compunha o trio impunha o pavor utilizando sua fala, sua voz e palavras como arma, tão possante quanto às de ferro dos outros dois.

Tentando centrar-me, buscando respiração adequada, sentia/pensava em meus filhos: como será que ficarão caso ocorra algo radical nessa arena? Sentia/pensava em minha companheira que havia ficado do lado oposto ao meu, no balcão: será que se estivéssemos juntos e ocorresse a radicalização iríamos juntos? Não, melhor ficarmos separados para tentarmos garantir a sobrevivência de um de nós. Se sairmos dessa, como nos sentiremos? Como trataremos disso sem cair nas armadilhas do discurso fácil e medíocre de plantão sobre “extermínio” da violência? E se alguém reagir? E se os funcionários da farmácia não quiserem entregar o dinheiro exigido? E se a polícia chegar nesse momento? E se eles verificassem a bolsa que minha companheira dispensou no balcão, pelo meio das caixas para que ficasse ali sem dono e encontrassem nossos cartões (endividados, mas com saldo extra (!) por eu ser importante para os bancos e administradoras de cartões de crédito, segundo o Capitalismo Parasitário, de Bauman) e quisessem nos levar para um rolê de terror pelos caixas eletrônicos? E se eles tivessem achado que poderiam ser reconhecidos quando trocamos olhares naquelas tensões?

Fiquei lembrando dos embates entre Luciano Huck e Ferréz, ocorrido após o empreendedor e filantropo apresentador ter sido assaltado, nos Jardins, em São Paulo. Lembrei da forma pedante como pensa e se pensa nessa sociedade expressando autocomiseração, através da auto-imagem revelada no texto que publicou, na Folha de São Paulo: “por que eu, esse cara bacana que ajuda todo mundo pela TV” e coisas do tipo? “por que eu, essa celebridade do bem?” Tomara que Huck tenha aprendido que nessas situações o protagonismo é das celebridades que, de armas empunhadas, encenam os mais grotescos trilers de pavor nas cenas cotidianas desse país. Comerciante, operário, médico, engenheiro, bancário, advogado, artista, comerciário, professor, nesse filme real tornam-se vermes coadjuvantes. As celebridades são os vermes sociais que temos gerado e nos recusado a ver. Eles crescem, proliferam e transbordam das margens, do alijamento de tudo e retornam. Tornamo-nos vermes, também, por fingir que isso não está acontecendo e quando somos interpelados por essas insurgências queremos a “solução final”, a extirpação do mal pela eliminação, como vem propondo uma pedagogia emergente de parte das elites e daqueles que se consideram ou ficam querendo ser elite nesse país, nesse estado, nessa cidade. Nossa humanidade, nosso humanismo é posto à prova nessas situações.

Medo, lixo, excremento, medo, dados de estatística, desesperança, mais medo, descrédito, vazio existencial, desejo de acordar de um pesadelo torpe...! Fila indiana como animais para o abate, nos conduziram para os fundos da farmácia, rumo ao banheiro minúsculo. Tremedeira, tensões, choros contidos, ira transpirando pelos poros, desespero de mulher grávida, solidariedade e cuidado com os ânimos... foram embora como chegaram! Desfalecimento coletivo! Saímos do cubículo, novos clientes chegando e percebendo o que estava acontecendo ali. A vertigem nos tomava, enquanto pegava a medicação, razão pela qual passei nessa farmácia para adquiri-lo, deixando o troco dos R$ 5,00 que dava à caixa quando os desenquadrados nos enquadraram.

Coracérebro multirreferenciado por questões emocionais e racionais profundas e confusas fui abatido pelo bundamolismo, estado pós-traumático de seres que, desesperados e tomados pela força do “sem saída”, ampliam sua ira inerte diante de calhordas parlamentares de Brasília que acabavam de aprovar salto salarial para o descarado patamar de R$ 26 mil reais, mensais, desdenhando dos cotidianos das comunidades desse país. De governadores, vereadores e outros profissionais da cabotinagem política brasileira, nem um pouco inquietos com a geração de monstros sociais que estamos procriando nas diferentes classes sociais, no Brasil, por descrédito de suas atuações e instaurando a barbárie: uns querendo possuir para a pertença às identidades de consumo e de visibilidade social que sem condições para isso, tiram de quem tem através de formas brutais, autoritárias e violentas. Outros, pela pertença solitária ou seletiva, esbanjando descaso e contribuindo com a miséria existencial que assola nossas relações, não se mobilizam para pensar coletivamente um projeto social. Ambos jactantes de si, de suas pertenças/poder, de seus estados fálicos e truculentos para tratarem dos dilemas coletivos institucionalizando a barbárie. Ambos assassinos em potencial do outro pelo estado zerado de alteridade, alimentados pela lógica da diferença que inferioriza, anula, invisibiliza quem não pertence à tribo/nação do outro por questões de classe, étnicas, sexuais, consumistas, enfim, culturais e econômicas e por não vislumbrarem um projeto coletivo de nação que tenha a diferença como fundante na perspectiva de Boaventura Sousa Santos: “sermos diferentes quando a igualdade quer nos homogeneizar e de sermos ao mesmo tempo iguais quando a diferença quer nos inferiorizar”.

O bundamolismo nos faz um aglomerado de acéfalos desmobilizados com a existência, com a cidadania, com os sentidos políticos e políticas de sentido que produzimos no social. Chafurda-nos numa “ditadura da alegria” (No Stress, Sorria Você Está na Bahia, Deus é Brasileiro, Nossa Cordialidade que Canta e Encanta, Pior do Está Não Pode Ficar...) que mantém a opacidade ou o impedimento da divulgação de fatos e processos que possam macular essa imagem, esse estado de letargia tropical da felicidade definidor do tom dos encaminhamentos dos poderes públicos e midiáticos com o social. Uma ditadura da felicidade que nos transforma em seres complacentes e conscientes desse estado de esculhambação que respiramos, reclamamos e pior, construímos a cada pleito eleitoral. Somos responsáveis sim, por todas essas mazelas e desdobramentos violentos e de descasos com a saúde, educação, moradia, segurança.

Recuso-me à conformação de sermos mais um dado que alimenta os bancos de pesquisa do social acadêmicos ou midiáticos! Recuso-me a continuar existindo e interagindo em um país que é “assim mesmo”! Recuso-me a aceitar uma política pública de segurança inoperante e truculenta, que só atua nos mega shows de Sangalos e Chicletes! Recuso-me a conivência com esses slogans medíocres sobre o governo que chega a todo lugar... “agora tem, tem, tem...” Tem o que? Para quem? Campeão em processos não solucionados nosso Estado segue contribuindo com a impunidade e geração de criminosos tanto entre os mais abastados, quanto entre os mais necessitados, apregoando e acreditando que esses problemas com a violência estão sendo importados do Sul/Sudeste em razão de não termos essa índole ou esse tipo de coisa aqui na Bahia!

Não educamos para um projeto coletivo de sociedade. Não julgamos por conta da morosidade de um judiciário togado e modorrento. Não punimos por termos medo e não lidarmos bem com isso, uma complacência medíocre nos abate e sempre tentamos dar “um jeito” nelas. Se punimos, utilizamos um sistema prisional (in)administrado como caixa de fezes onde despejamos os dejetos que muitas vezes nem tiveram chance de não sê-lo. Não somos uma sociedade, educadora, administradora, cuidadora e muito menos solidária. Só quando estamos nos afogando em enchentes ou querendo ver o mega show Criança Esperança. Peço desculpas às minorias e exceções dos quadros que aponto aqui. Mas, precisamos deixar essa condição de minoria heróica e solidária para nos tronarmos humanos que precisam aprender a conviver nas diferenças com respeito, solidariedade e dignidade.

Não podemos dizer “ainda bem que saímos ilesos dessa história”! Sair de uma situação como a que vivenciamos na farmácia não configura condição de ‘ilesados’! Viver na situação de descaso do poder público para as mazelas sociais não é compatível com ‘ilesidade’! As marcas deixadas são profundas e desalentadoras. Temos sido lesados cotidianamente por calhordas na política, nas relações sociais, nas tensões cotidianas onde ocorrem embates e negociações por significados culturais disputando o poder hegemônico. São mortes, muitas mortes, da cidadania, da confiança, da solidariedade, de vidas e quase de utopias e esperanças.

Zelão
zelosmegatrend@uol.com.br

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