domingo, 27 de novembro de 2011

13. USADORES DA CIDADE TODA, UNÍ-VOS!

Se considerarmos Cidade como teia tecida pelas opções políticas dos cidadãos, onde explodem suas ações cotidianas em constantes tensões, tanto no campo tangível (aquilo que se materializa) quanto no campo não tangível (os significados que são forjados no jogo social), podemos refletir sobre as multiformas de intervenção, as polilógicas de ocupação, a multiplicidade desenhada cotidianamente por seus usadores. Apropriei-me desse conceito por considerá-lo potente para tratar da complexidade da relação cidadão/cidade. De acordo com Marcelo Faria, Geógrafo, Economista e parceiro da labuta cotidiana, usador é um termo cunhado por Henry Lefèbvré para designar os indivíduos que se apropriam do espaço urbano. Para ele, esse termo não equivale a usuário, posto que esse último é uma referência ao uso consentido e não apropriado do espaço urbano. Penso que, na provocação aqui lançada, ele dê conta de trazer as ambivalências dos movimentos e das relações cidadãos/cidade.

Funcionalidade é o que caracteriza os movimentos praticados por esses usadores que a criam/alteram e que são criados/alterados por ela. Por mais que tenham sido planejadas, as cidades vão sendo configuradas pelas necessidades e funcionalidades de seus usadores. Nesse jogo cotidiano, tanto abastados quanto necessitados, tanto incluídos quanto excluídos traçam seus desenhos em função de operacionalidades que atendam diretamente seus interesses.

O tema Cidade, desde os primórdios de sua história, tem importância significativa na vida de seus usadores. Entretanto, hoje, parece que estamos tomados apenas por nossas exclusivas funcionalidades e perdendo o senso de coletividade e de comunidade. Estamos nos tornando bombas demográficas, e cada um de nós - ou aqueles que consideramos iguais - é um detonador em potencial desse aparato explosivo. Não estamos discutindo as tessituras onde nos configuramos como cidade/cidadãos na perspectiva comunitária. Temos refletido pouco e agido menos ainda nessa direção. Temos degladiado muito mais como inimigos que não se aceitam nas diferenças, disputando seus espaços, do que seres diferentes na multiplicidade, que precisam conquistar respeito, direitos, para elaboração de projetos que mobilizem as comunidades para o bem comum, para a consciência de que a teia que tecemos é tecida junta, na diversidade, por isso ela é complexa. Nossa participação nesses projetos têm sido ínfima ou nenhuma.

Dentre as inúmeras questões visíveis e sentidas que emergem desses contextos, duas delas são aqui trazidas como provocação para refletirmos sobre as tais teias. Vamos a elas.

Vejamos primeiramente a movimentação para o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município do Salvador – PDDU 2007. Numa matéria publicada no A Tarde Cidades, pesquisa do Instituto Vox Populi mostrou que, em novembro daquele ano, somente 26% da população de Salvador tinha noção do que era o PDDU e que somente 0,2% contribuiu para o projeto de lei da cidade do Salvador. Esse dado revela como elites privilegiadas de usadores abastados vêm definindo a cidade de acordo com o que querem para si, alijando a massa de usadores dessas decisões sobre o movimento da cidade. Políticos mantidos por esses grupos propõem e aprovam leis que asseguram suas próprias funcionalidades, como se elas fossem demandas gerais. A cidade corre o risco de ser loteada entre esses grupos poderosos que passam a forjar verdades que se tornam hegemônicas, subjetivando as dinâmicas da vida nas cidades. Verdades do tipo ”precisamos dessas reformas, desse embelezamento que nos permitirá viver bem, com mais modernidade, como cidadãos do futuro” tornam-se paradigmas emergentes sem que haja discussão e definição desses conceitos para o coletivo.

A ocupação da rua onde moro, na Pituba, bairro de classe média da soterópolis, nesses últimos 6 anos, ilustra essa situação: numa extensão de 300m de comprimento, há 19 prédios que possuem, em média, 15 andares com 4 apartamentos cada. Se considerarmos que, nesse total de 1140 residências dispostas na vertical, existam famílias com, no mínimo 3 pessoas, e que cada uma delas tenha, 2 carros, teremos 3.420 pessoas querendo ir e vir com seus 2.280 veículos nesse trecho! Devo salientar que dois desses edifícios estão em fase de finalização. Mas até o fim de 2012 estarão abrigando novas famílias para conviverem nesse espaço. E certamente todos disputarão cada milímetro dele, buzinando, trafegando estressados, querendo acelerar de 0 a 100 km em 2 segundos, em 30 metros; estacionando sobre as calçadas, em portas de entrada e saída de veículos, em locais que estorvam todo trânsito e coisas do tipo. E todos felizes por terem adquirido seu apezinho com muito esforço (o que é louvável), mas sem querer discutir suas vidas a partir dessa ocupação. Nem vou me arvorar aqui para tratar da vida nos condomínios. Isso é para um outro ensaio!

Por onde andamos nós, usadores dessa cidade? Qual foi nossa mobilização para o PDDU? Como temos trabalhado com as decisões e os encaminhamentos de nossos representantes? É notório que estamos desinteressados, desdesejosos, destesonados com o coletivo.

Outra questão que trago é a de uma barbárie estética, invasiva, desrespeitosa das leis de propaganda nas vias urbanas, poluidora visual que demonstra bem as intenções de seu autor/autores com a cidade: danem-se e consumam meus serviços! Estou tratando da aberração promovida em bairros da soterópolis por um tal, ou uns tais “Pego Entulho. Faço Carreto - 9280 2824, 8887 8683, 8329 2449”. O autor ou os autores dessa intervenção marqueteira poluidora, deliberadamente, pintou/pintaram seu recado e telefone em sequências de postes de inúmeras ruas da cidade. É pouco provável que tenha obtido autorização de alguém. Que poder público autorizaria uma atitude dessas? Evidentemente esse “criativo” não pagou por isso, pisoteou as regras, as leis que vigoram na cidade para a propaganda nas ruas. É uma atitude de dane-se todos os usadores! Sua mensagem em nada contribui para a melhoria da qualidade de vida, para a emancipação dos cidadãos. Não é de interesse popular, pois está em bairros onde os moradores têm condições de pagar por seus serviços. Seus lucros não serão divididos ou investidos na comunidade, no social. Onde estão os poderes públicos Municipal e Estadual para impedir e punir autores de atitudes como essa? A julgar pela condução de outras políticas públicas e encaminhamentos relativos à cidade, podemos fazer ideia! Que tipo de cidade estamos nos tornando ao sermos coniventes com tais ações? E mais: ao utilizarmos esse serviço como se fosse de utilidade pública? Quem vai bancar os serviços de limpeza dessa poluição visual na já tão judiada e quase abandonada Salvador? Será que ninguém viu o pintor desses postes? Será que os usadores e usadores autoridades públicas não ficaram sabendo disso? Os telefones estão lá estampados nos postes! Vai ficar por isso mesmo? Usadores, cidadãos, contribuintes, Vereadores, Deputados, gestores do Executivo, onde estamos nós? Pior! Corremos o risco de assisti-lo numa entrevista no Fantástico, na Rede TV, como genial! Ainda teremos de ouvir que foi uma atitude arrojada, ousada, transgressora de um criativo que lançou uma campanha agressiva para seu negócio! Pouco vai se tratar de sua arbitrariedade e desrespeito ao espaço público, às leis que vigoram na cidade, ao cuidado com o espaço coletivo como possibilidade de qualidade de vida; enfim, nada será discutido e acionado em favor das regras coletivas.

Penso que devemos utilizar os telefones propagandeados nos postes para uma manifestação coletiva, ligando insistentemente para ele ou eles, exigindo que a limpeza dos postes públicos seja feita imediatamente, com verba própria, sob pena de ser processado pelo Poder Público e boicotado pelos usuários desse tipo de serviço! Devemos fazer contato também com os órgãos responsáveis para uma ação mais enérgica, fazendo valer a autoridade do coletivo da cidade.

Não proponho aqui censura à comunicação. Mas, sim, discussão e decisão nas instâncias devidas, que representam a coletividade. Aqui emerge contradição com o conceito usadores, de Lefèbvré. As construtoras daqueles empreendimentos que se efetivam pela ausência do debate, por falta de conhecimento e participação da coletividade, bem como os “criativos poluidores” visuais das vias urbanas, são também usadores. Apropriam-se do espaço urbano sem consentimento da oficialidade. Porém ela pode ser superada se entendermos que esse tipo de apropriação é umbigóide, centrada exclusivamente em seus interesses e funcionalidades. Talvez o termo usurpador seja mais adequado a esse tipo de cidadão do que usador. Sua apropriação não está na perspectiva da coletividade, e sim de uma lógica do capital que exclui e alija o coletivo.

Queremos ser essa cidade que estamos vivendo e tecendo? Queremos ser usadores/cidadãos tecidos por esse tipo de movimento?

Usadores da cidade toda, uni-vos!

Zelão
zelosmegatrend@uol.com.br
publicado no portal: http://www.caramure.com.br/artigos/usadores-da-cidade-toda-uni-vos/

sábado, 24 de setembro de 2011

12. REFÉNS DE NOSSO BUNDAMOLISMO

A partir de agora, eu e minha companheira somos parte das estatísticas sobre violência nesse país latino americano, emergente, festivo, que vive da auto-imagem decrépita de se achar cordial e de uma identidade de povo do futuro, forjada talvez, como auto defesa para as mazelas da pobreza e da miséria que “até há pouco” nos caracterizava.

Vivemos o drama de termos sido assaltados coletivamente, numa farmácia, em pleno cair da tarde, nublado e abafado pelo mormaço da soterópolis.

Dois caras e uma garota, não mais de 20 anos, pessoas comuns, tensos nas ações e racionalmente objetivos para submeter a todos que ali estavam, anunciaram a ação! Parte de nós para o balcão e outra para um canto, atrás das caixas ordenados para que sentássemos no chão. Armas em punho e em guarda (um portava dois 38, um prateado, novíssimo e reluzente e mais um, preto. O outro, com outro 38 surrado e inquieto nos movimentos de sua mão, também, preto), intimidando, ameaçando e “tranquilizando-nos”, vermes acuados com vertigens, tremedeira, pavor e quase sem controle dos esfíncteres (eles também, com certeza estavam assim, só que no controle total da situação!). Em menos de 5 minutos limparam-nos de nossos pertences e valores em espécies, enquanto a outra protagonista da ação que compunha o trio impunha o pavor utilizando sua fala, sua voz e palavras como arma, tão possante quanto às de ferro dos outros dois.

Tentando centrar-me, buscando respiração adequada, sentia/pensava em meus filhos: como será que ficarão caso ocorra algo radical nessa arena? Sentia/pensava em minha companheira que havia ficado do lado oposto ao meu, no balcão: será que se estivéssemos juntos e ocorresse a radicalização iríamos juntos? Não, melhor ficarmos separados para tentarmos garantir a sobrevivência de um de nós. Se sairmos dessa, como nos sentiremos? Como trataremos disso sem cair nas armadilhas do discurso fácil e medíocre de plantão sobre “extermínio” da violência? E se alguém reagir? E se os funcionários da farmácia não quiserem entregar o dinheiro exigido? E se a polícia chegar nesse momento? E se eles verificassem a bolsa que minha companheira dispensou no balcão, pelo meio das caixas para que ficasse ali sem dono e encontrassem nossos cartões (endividados, mas com saldo extra (!) por eu ser importante para os bancos e administradoras de cartões de crédito, segundo o Capitalismo Parasitário, de Bauman) e quisessem nos levar para um rolê de terror pelos caixas eletrônicos? E se eles tivessem achado que poderiam ser reconhecidos quando trocamos olhares naquelas tensões?

Fiquei lembrando dos embates entre Luciano Huck e Ferréz, ocorrido após o empreendedor e filantropo apresentador ter sido assaltado, nos Jardins, em São Paulo. Lembrei da forma pedante como pensa e se pensa nessa sociedade expressando autocomiseração, através da auto-imagem revelada no texto que publicou, na Folha de São Paulo: “por que eu, esse cara bacana que ajuda todo mundo pela TV” e coisas do tipo? “por que eu, essa celebridade do bem?” Tomara que Huck tenha aprendido que nessas situações o protagonismo é das celebridades que, de armas empunhadas, encenam os mais grotescos trilers de pavor nas cenas cotidianas desse país. Comerciante, operário, médico, engenheiro, bancário, advogado, artista, comerciário, professor, nesse filme real tornam-se vermes coadjuvantes. As celebridades são os vermes sociais que temos gerado e nos recusado a ver. Eles crescem, proliferam e transbordam das margens, do alijamento de tudo e retornam. Tornamo-nos vermes, também, por fingir que isso não está acontecendo e quando somos interpelados por essas insurgências queremos a “solução final”, a extirpação do mal pela eliminação, como vem propondo uma pedagogia emergente de parte das elites e daqueles que se consideram ou ficam querendo ser elite nesse país, nesse estado, nessa cidade. Nossa humanidade, nosso humanismo é posto à prova nessas situações.

Medo, lixo, excremento, medo, dados de estatística, desesperança, mais medo, descrédito, vazio existencial, desejo de acordar de um pesadelo torpe...! Fila indiana como animais para o abate, nos conduziram para os fundos da farmácia, rumo ao banheiro minúsculo. Tremedeira, tensões, choros contidos, ira transpirando pelos poros, desespero de mulher grávida, solidariedade e cuidado com os ânimos... foram embora como chegaram! Desfalecimento coletivo! Saímos do cubículo, novos clientes chegando e percebendo o que estava acontecendo ali. A vertigem nos tomava, enquanto pegava a medicação, razão pela qual passei nessa farmácia para adquiri-lo, deixando o troco dos R$ 5,00 que dava à caixa quando os desenquadrados nos enquadraram.

Coracérebro multirreferenciado por questões emocionais e racionais profundas e confusas fui abatido pelo bundamolismo, estado pós-traumático de seres que, desesperados e tomados pela força do “sem saída”, ampliam sua ira inerte diante de calhordas parlamentares de Brasília que acabavam de aprovar salto salarial para o descarado patamar de R$ 26 mil reais, mensais, desdenhando dos cotidianos das comunidades desse país. De governadores, vereadores e outros profissionais da cabotinagem política brasileira, nem um pouco inquietos com a geração de monstros sociais que estamos procriando nas diferentes classes sociais, no Brasil, por descrédito de suas atuações e instaurando a barbárie: uns querendo possuir para a pertença às identidades de consumo e de visibilidade social que sem condições para isso, tiram de quem tem através de formas brutais, autoritárias e violentas. Outros, pela pertença solitária ou seletiva, esbanjando descaso e contribuindo com a miséria existencial que assola nossas relações, não se mobilizam para pensar coletivamente um projeto social. Ambos jactantes de si, de suas pertenças/poder, de seus estados fálicos e truculentos para tratarem dos dilemas coletivos institucionalizando a barbárie. Ambos assassinos em potencial do outro pelo estado zerado de alteridade, alimentados pela lógica da diferença que inferioriza, anula, invisibiliza quem não pertence à tribo/nação do outro por questões de classe, étnicas, sexuais, consumistas, enfim, culturais e econômicas e por não vislumbrarem um projeto coletivo de nação que tenha a diferença como fundante na perspectiva de Boaventura Sousa Santos: “sermos diferentes quando a igualdade quer nos homogeneizar e de sermos ao mesmo tempo iguais quando a diferença quer nos inferiorizar”.

O bundamolismo nos faz um aglomerado de acéfalos desmobilizados com a existência, com a cidadania, com os sentidos políticos e políticas de sentido que produzimos no social. Chafurda-nos numa “ditadura da alegria” (No Stress, Sorria Você Está na Bahia, Deus é Brasileiro, Nossa Cordialidade que Canta e Encanta, Pior do Está Não Pode Ficar...) que mantém a opacidade ou o impedimento da divulgação de fatos e processos que possam macular essa imagem, esse estado de letargia tropical da felicidade definidor do tom dos encaminhamentos dos poderes públicos e midiáticos com o social. Uma ditadura da felicidade que nos transforma em seres complacentes e conscientes desse estado de esculhambação que respiramos, reclamamos e pior, construímos a cada pleito eleitoral. Somos responsáveis sim, por todas essas mazelas e desdobramentos violentos e de descasos com a saúde, educação, moradia, segurança.

Recuso-me à conformação de sermos mais um dado que alimenta os bancos de pesquisa do social acadêmicos ou midiáticos! Recuso-me a continuar existindo e interagindo em um país que é “assim mesmo”! Recuso-me a aceitar uma política pública de segurança inoperante e truculenta, que só atua nos mega shows de Sangalos e Chicletes! Recuso-me a conivência com esses slogans medíocres sobre o governo que chega a todo lugar... “agora tem, tem, tem...” Tem o que? Para quem? Campeão em processos não solucionados nosso Estado segue contribuindo com a impunidade e geração de criminosos tanto entre os mais abastados, quanto entre os mais necessitados, apregoando e acreditando que esses problemas com a violência estão sendo importados do Sul/Sudeste em razão de não termos essa índole ou esse tipo de coisa aqui na Bahia!

Não educamos para um projeto coletivo de sociedade. Não julgamos por conta da morosidade de um judiciário togado e modorrento. Não punimos por termos medo e não lidarmos bem com isso, uma complacência medíocre nos abate e sempre tentamos dar “um jeito” nelas. Se punimos, utilizamos um sistema prisional (in)administrado como caixa de fezes onde despejamos os dejetos que muitas vezes nem tiveram chance de não sê-lo. Não somos uma sociedade, educadora, administradora, cuidadora e muito menos solidária. Só quando estamos nos afogando em enchentes ou querendo ver o mega show Criança Esperança. Peço desculpas às minorias e exceções dos quadros que aponto aqui. Mas, precisamos deixar essa condição de minoria heróica e solidária para nos tronarmos humanos que precisam aprender a conviver nas diferenças com respeito, solidariedade e dignidade.

Não podemos dizer “ainda bem que saímos ilesos dessa história”! Sair de uma situação como a que vivenciamos na farmácia não configura condição de ‘ilesados’! Viver na situação de descaso do poder público para as mazelas sociais não é compatível com ‘ilesidade’! As marcas deixadas são profundas e desalentadoras. Temos sido lesados cotidianamente por calhordas na política, nas relações sociais, nas tensões cotidianas onde ocorrem embates e negociações por significados culturais disputando o poder hegemônico. São mortes, muitas mortes, da cidadania, da confiança, da solidariedade, de vidas e quase de utopias e esperanças.

Zelão
zelosmegatrend@uol.com.br

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

11. SIGNIFICADOS POSSÍVEIS DA TERRA DO SALVADOR EM TEMPOS PRESENTES DE AXÉ

Quais significados configuram essa terra tão decantada nesses anos de história que adentram o novo século? Para uma grande maioria de brasileiros e não brasileiros, dentro e fora do Brasil, Salvador é significado de Bahia. Esse estado da Federação, ou essa identidade cultural aparece na mídia via Salvador. Fora disso, quando muito, configura-se nas novelas e em outros programas que trazem caricaturas do sertanejo como baiano e nordestino. A multiplicidade de Bahia e baiano não cabe em reducionismos simplificadores e uniformizadores como temos constatado na mídia e no mercado.

Nesse pequeno ensaio, quero tratar do contexto festivo de Salvador como significado de Bahia em seus 462 anos. Penso em duas referências mobilizadoras para refletirmos sobre isso.

O baiano Albergaria, em sua perspectiva anarcoantropológica propõe três marcos culturais interessantes para pensarmos a Bahia no século XX: a Bahia do imaginário de Jorge Amado, a Bahia dos Novos Baianos, da Tropicália e a Bahia do Axé. Segundo ele, a 1ª Bahia é aquela dos pescadores com chapelões de palha, das morenas brejeiras, das putas dos becos e vielas do Maciel, das puxadas de rede em Itapuã, de Cayme, Mario Cravo, Verger, Zélia Gatai, Dinha do Acarajé e do próprio Jorge Amado; uma Bahia da literatura, dos romances e tragédias tropicais. A 2ª Bahia á dos Novos Baianos, dos Doces Bárbaros, de Gil, Caetano, Gal, Bethânia; uma Bahia que se torna midiática, que ganha a comunicação de massa. A 3ª é a Bahia do No Stress, da terra da felicidade eterna, da curtição sem limites, onde o Axé, mais que um estilo musical, torna-se um estilo de vida, de consumo, um mercado promissor.

O francês Michel Maffesoli, sociólogo do presente, afirma que vivemos a presentificação da vida, o agora, onde não há mais espaço para o saudosismo do passado nem para a utopia do futuro. Tempos em que novas formas de solidariedade desconstroem os modelos vigentes na modernidade, centradas não no racionalismo, mas na emoção, no afeto e no prazer. Provoca-nos ainda, para pensarmos a Modernidade através do mito de Prometeu, deus do trabalho, da razão, da seriedade e pensarmos também o que ele classifica como Pós-Modernidade, via o mito de Dionísio, a desordem, a festa, o hedonismo. O sociólogo aponta que nesse tempo presente o trabalho tem seu lugar, mas o prazer, a festa, a emoção buscam o retorno de elementos que a Modernidade julgava ultrapassados, configurando um novo humanismo, juvenil e criativo, através de uma espécie de juventude eterna.

É sobre aquela 3ª Bahia e dessa presentificação hedonista que teço a rede de possíveis significados da Soterópolis em seu 462º. aniversário. E não creio que possa fazê-lo fora da perspectiva das ambivalências e da complexidade.

As festas do calendário da Terra da Felicidade ao mesmo tempo em que geram empregos, mesmo que temporários, informais e não-qualificados, promovem significados de subdesenvolvimento quando vemos os deslocamentos de famílias de suas residências na periferia e nos bolsões cravados pelos corredores da cidade, para os circuitos das festas instalando-se desinstaladamente em calçadas, meio-fios, com beliches, colchonetes, papelões, cobertores, inseridos nas mais nefastas condições de insalubridade.

Os trios, blocos e camarotes frequentados e habitados fugazmente por abastados (e até endividados) abrilhantam, sofisticam e embranquecem as festas e contrastam com os ambulantes, cordeiros e gente de todo tipo na pipoca que escurecem os eventos. Embranquecimento e escurecimento não são inocentes, não acontecem ao acaso, são forjados politicamente no social e revelam diferentes aspectos segregatórios que caracterizam essa sociedade reinterpretada nessas festas. De certa forma, elas reproduzem essas segregações.

Seus ídolos e heróis, artistas e profissionais de muito carisma e competência para aquilo a que se propõe demonstram profissionalização e criatividade animando a massa, ao mesmo tempo em que se transformam em ícones de mercado para consumo dos mais diversos produtos, inclusive impróprios para menores. Muitos se renderam à visibilidade midiática e aos cachês estratosféricos geradores de notoriedade que promovem afetações do tipo “sou criador de... e por isso eu posso e faço o que quiser”, “eu sou um presente para o povo”...

Sobre o carnaval especificamente, na saída de um dos grupos afro no Pelourinho (que realizava apresentação espetacularmente maravilhosa e vibrante), o governador fazia seu discurso com os viciados jargões sobre maior festa do mundo: baixos índices de violência, festa democrática e da diversidade, que gera trabalho e tira crianças da rua, enquanto por entre a massa empolgada da qual eu fazia parte, crianças “pretas, brancas, quase pretas e quase brancas” em situação de risco em todos os sentidos, disputavam acirradamente latinhas de alumínio e escarafunchavam restos de salgadinhos e outros petiscos deixados por turistas e locais.

O Axé como estilo de vida, como um jeito de ser e estar no mundo não demonstra lastros com o passado e nem vislumbra futuro. O passado é, no máximo, a música do ano anterior. E o futuro, o próximo trio que lá vem. O caro consumo desse estilo se assenta num forte hedonismo, na erotização da sexualidade, no prazer, na fugacidade e na perspectiva escópica (vejo e preciso ser visto para existir) em diferentes níveis, dos Vips aos Pipocas. Nessa lógica a vida tem de ser vivida intensamente agora, entorpecida por destilados, fermentados, alucinógenos e outros psicoestimulantes.

O POP de Salvador é abrangente/limitador: ele absorve toda e qualquer tendência. Brinco com isso, afirmando que se Beethoven fosse vivo, certamente seria convidado por uma das estrelas do POP soteropolitano para reger a 9ª. Sinfonia num trio elétrico no carnaval. Todos a ouviriam, interagiriam e entretanto, a ressignificariam tranformando-a numa levada de samba-reggae, pagode ou cavalgada. A diversidade é reconhecida até cair no liquidificador POP onde se AXÉdifica e passa a ser consumida. Torna-se uma espécie de diversidade do mesmo. Isso é estratégia para consumo, hegemonia de uma produção local transformando o global, conservadorismo por transformar o diverso em algo familiar e definir a diferença a partir de si, liberalidade por entender o diverso como quiser e transformá-lo no que quiser ou quê?
As propostas e produções diferentes do paradigma do Axé tem espaço mas não visibilidade. Aparecem como formas alternativas de “cultura” e entretenimento que se apresentam em espaços e horários de visibilidade um tanto nublada.

Essa Bahia do Axé gera visibilidade, recursos e emprego, mesmo que de qualidade duvidosa. Isso é notório e também comprovado nas estatísticas. Entretanto, não gera distribuição de renda. Não altera e perpetua com novas fantasias, ou melhor, novos abadás o modelo que concentra renda, praticado há séculos nesse país. A Bahia do Axé oferece possibilidades concretas de presentificação dionisíaca a consumidores ávidos por possibilidades hedonistas. Não basta só querer descumprir ritos da burocracia cotidiana, desopilar e extravasar. Há que se praticar tudo isso com visibilidade transmitida midiaticamente para o mundo. É preciso bater recordes de beijos na boca, de latinhas consumidas, de gente por metro quadrado nas ruas. A propósito, onde todos os recordistas urinam e defecam durante esse período?

Há muito mais na Bahia, em Salvador, do que a Bahia do Axé. Há um universo complexo, original de intensa criatividade que insiste em continuar existindo para além do enquadre da ditadura do prazer e da alegria e que também, promovem alegria e prazer. No mínimo, festas que se intitulam “da diversidade”, da “democracia”, “popular”, deveriam trabalhar melhor com horários, espaços, visibilidade midiática e promoções fazendo valer tal discurso. A proposta da TVE Salvador pode ser uma ótima referência nesse sentido mostrando a multiplicidade de expressões das festas Baianas, não só soteropolitanas.

Será que essa cultura, a do Axé e a do Presentismo Hedonista já se consolidou como significado hegemônico de Bahia, de Baiano? Será que queremos ser vistos, reconhecidos, subjetivados por esses significados, tanto na aldeia global como para nós mesmos baianos e não baianos que vivem e interagem aqui? É possível estabelecermos uma única identidade para a multiplicidade de Salvador, da Bahia, do Brasil? Não creio nisso.

Congratulo-me com esse povo bacana que é festeiro sim, que gosta do prazer sim, que leva a vida de seu jeito, sim. Mas, que não é só Axé Para o Agora, não! Tem muita história e muita perspectiva de futuro promissor, principalmente nas artes, na música, sim! Que esse povo e o governo eleito por ele (adormecido em berço sem oposições) olhem para si e se vejam na teia de significados possíveis praticados também com trabalho, seriedade, competência, e muitas gingas que transpassem essa fronteira de significado único e interaja na multiplicidade.

Parabéns Salvador!

Zelão
zelosmegatrend@uol.com.br

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

10. HIBRIDAÇÕES SOTEROPOLITÂNICAS

Dentre as tantas reflexões urgentes na contemporaneidade penso que cultura seja uma das mais instigantes. Ainda nos deparamos com arautos da “verdadeira cultura”, da “pureza cultural”, da “cultura correta” e com embaixadores da “cultura nacional”, da “cultura ocidental” ou com paladinos doutos definindo o que “é” e o que “não é” cultura, quem “produz” e quem “não produz” cultura.

Essas tensões estão presentes nas mais diversas expressões da comunicação cotidiana, em conversas corriqueiras, programas de TV e rádio, mensagens em outdoors, notícias e matérias em jornais, postagens em blogs sites entre outros. Parece que precisamos nos decalcar em modelos que aprendemos a significar como padrão para perceber e ver o outro. Se outro for igual, tudo bem! Estamos tranquilos. Mas se outro for “outro” estaremos reconhecendo a diferença e isso pode se constituir em potencial ameaça a igualdade que sentimos com os outros-iguais. Parece haver uma necessidade de definirmos, enquadrarmos, estereotiparmos, subjetivarmos o “outro” como inferior, não correto, não verdadeiro, não puro, fora do modelo que consideramos oficial e, portanto, algo que “não é”.

Refletir sobre cultura é questionar esses modelos, essa forma de vermos-nos como iguais e diferentes, pois estamos no universo das intersubjetividades, no universo dos significados, na linguagem, no discurso que promove o acesso à materialidade. Tais questões nem sempre aparecem objetiva e claramente, muitas vezes emergem sutilmente, subliminarmente, ocultamente, sem despertar necessidades ou desejos de questionamentos.

Penso que lidar com cultura requer criticidade para desvelamentos, desconstruções daquilo que é posto como verdade absoluta, aquilo que os teóricos desse campo denominam naturalizações. Em cultura, as desnaturalizações são estratégias para não ficarmos acobertados por “mantos da verdade”, “mantos do bem”, “mantos da igualdade”, “mantos que preservam nosso verdadeiro alguma coisa”. Em cultura há que se desacobertar para tratarmos dos significados produzidos nas relações e optarmos sobre se queremos ou não adotá-los para superarmos condição de quase reprodutores de significados definidos por alguém, por alguns que têm a pretensão de tornarem-se referência (de verdade, de correto, de pureza) e desprezar e as diferenças.

É recorrente em minhas reflexões a provocação do sociólogo Boaventura de Souza Santos sobre esse tema: temos de ser diferentes quando a igualdade quer nos homogeneizar e temos de ser iguais quando as diferenças querem nos inferiorizar. Sou pelas diferenças. Durante muito tempo fui pela igualdade, acobertado por significados não refletidos, não desnaturalizados. Queria tratar dessas questões sem saber, sem reconhecer sua complexidade e, portanto, a impossibilidade de tratá-las sem tensões.

Tratar da cultura é lidar com múltiplas tensões da ordem do social e do político. É lidar com a diferença como potência para superarmos posturas que classifico como umbigóides (autocentradas, ensimesmadas, que só têm a si como referência). Tratar da cultura é interagir com significados que estão em constantes embates e negociações. Nessa perspectiva não aceitaremos culturas “superiores e inferiores”, “cultura boa e cultura ruim”, “cultura certa e cultura errada”. Temos de conceber cultura como tudo aquilo que é produzido pelos humanos no social. Desde suas ideias sobre a vida, o mundo, sobre as coisas, até sua produção material. Tudo aquilo que afeta as subjetividades (sua forma de ver e sentir o mundo) e precipita suas ações. Tanto Bach, quanto Chiclete com Banana produzem significados culturais, produzem cultura. Tanto a decantada Paris, na França, quanto o sofrido Alagados, em Salvador, produzem significados, produzem cultura por que afetam subjetividades tornando-a isso ou aquilo. O consumo é uma modalidade de cultura nesses tempos de promoção de significados imagéticos e midiáticos do Capitalismo Tardio.

Não quero defender a aceitação acrítica de significados em nome de um relativismo acomodado, numa perspectiva multicultural passiva. Prefiro o Multiculturalismo Crítico, de Peter MacLaren. Esse canadense que discute currículo e cultura, afirma que opções devem ser tomadas, no entanto, refletindo e desvelando tais significados, desacobertando-os de seu sentido único, trazendo tensões em embates e não negando a existência, o não-reconhecimento daquilo que não é minha perspectiva. O discurso multiculturalista por si só acaba sendo uma grande colcha de retalhos onde parece que a multiplicidade de significados não é alterada e não se permite interações modificadoras mutuamente; mantém as diferenças nos quadros do “ado, a-ado, cada um no seu quadrado”! Ao contrário, criticidade com as tensões em embates podem gerar Respeito e não Tolerância com a diferença.


Tentando articular cultura e cotidiano na perspectiva que discorri até agora, trago uma provocação que me mobilizou fortemente nas tramas cotidianas da teia soteropolitana para seguirmos na reflexão sobre cultura.

Num domingo desses, sem relógio e sem pressa, procurando algum lugar para almoçar, acabamos assentando numa churrascaria, na Boca do Rio, bairro da Soterópolis. Enquanto fazíamos o pedido e aguardávamos os pratos, fui me apercebendo dos significados em tensão que se configuravam aquele espaço.

O local intitulava-se churrascaria. No entanto, fomos surpreendidos pelo garçom que nos oferecia pizzas no sistema de rodízio, de múltiplos sabores: queijo coalho, banana, carne de sol, brigadeiro entre outras; a churrascaria oferecia, ainda, massas: lazanha, caneloni, espagueti, fetuchine, em molhos diferenciados. Na sequência, nos ofereciam carnes variadas, típicas de um rodízio, calabresa, maminha, costela, picanha, lombo, frango, coração...

O amplo espaço onde estavam dispostas as mesas tinha as paredes decoradas com painéis de grandes dimensões que traziam paisagens rurais do Sul do Brasil, quadro com embarcações típicas, ancoradas em uma baia chinesa, ladeado por outros quadros com paisagens tropicas do Nordeste do Brasil.

À medida que percebia essa diversidade, aguçava-me mais ainda a percepção para a diversidade que acontecia nessas duas horas em que interagimos nessa arena de significados em embates.

Os garçons revelavam sua mestiçagem “biológica”, no tom da pele, nas características dos olhos, bocas, expressões em seus visuais mulatos e mamelucos, servindo mesas ocupadas por “loiras de farmácia”, “brancos com cabelo carapinha”, “negros”, garotos com “cabelos multicores”, uma pequena família japa” (como sei se são realmente japoneses? Será que apenas pelos olhos pequenos e puxados?) e por nós, eu e minha companheira, paulistas do interior e meus filhos, um nascido em Teixeira de Freitas no Interior da Bahia e outra, soteropolitana, aparentando traços de etnias europeias e indígenas. Tudo isso, aparente. E as outras referências que não observamos que não são tangíveis? Deveriam ampliar ainda mais o cenário e atores da diversidade. E como toda essa gente se vê e se sente? Com quais identidades se definem? Com quais identidades são definidos? As identidades são fixas ou têm mobilidade? Podemos celebrar as identidades como quer o sociólogo jamaico-britânico, Stuart Hall? Como tais diferenças se comportam nessa arena de significados? Há interações entre elas? Há alterações entre elas, Será que há pureza entre elas? Qual delas é a “verdadeira cultura”, a “cultura correta”, a “cultura superior” que define todas as outras?

Canclini, antropólogo argentino, referência importante para tratarmos de cultura nessa perspectiva e, em especial, das culturas latino-americanas, auxilia-nos para essa reflexão quando traz o conceito de hibridação cultural. Nosso antropólogo afirma que esse conceito define um conjunto de processos de trocas mesclando culturas, ou formas culturais, tanto a mestiçagem racial ou étnica, como o sincretismo religioso e outras maneiras de fusão cultural, como a musica. A hibridação não é um fenômeno novo, sempre que ocorre o contato entre culturas há empréstimos de elementos entre elas, há afetações entre elas, há alterações entre elas. Na contemporaneidade, a ampliação de possibilidades de viagens, de relações entre as culturas e as indústrias audiovisuais, os processos migratórios entre outros, incitam ampliação do acesso de umas culturas aos repertórios de outras. Essa relação não é harmônica, pacífica, apenas enriquecedora, é sim, bastante conflituosa. Hibridação é apenas uma das modalidades de interculturalidade, fenômeno mais interessante que a multiculturalidade. Enquanto na multiculturalidade pode parecer que as diferenças estão ali, estáticas apenas, no segundo há movimento, deslocamentos, empréstimos, recusas, ressignificações. Interculturalidade é um campo conflituoso e contestado.

Nesses cenários, estruturas e práticas que existiam isoladamente afetam-se a ponto de plasmarem novas estruturas, conceituais, materiais ou práticas. São combinações nem sempre previsíveis, capazes de nos deslocar de posturas umbigóides e de posições privilegiadas para ver os “outros”.

Aquele espaço se configurava em algo para além da churrascaria, onde se plasmava interculturalidade.

O Brasil é um grande palco para esse tipo de interculturalidade. A nossa Soterópolis, por suas condições históricas e significados que a fazem possuir notoriedade é uma grande arena desses embates, apesar de grupos segregadores tacitamente naturalizar a balela de “manto da democracia racial” que mais fortalece a permanência de um poder que se quer saneado de impurezas, sentido e vivenciado em suas esquinas.

A soterópolis é mestiça, é hibrida! Graças aos deuses e aos humanos que a significam e a ressignificam!

A propósito, foi um almoço saborosamente interessante!

Zelão
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