Se considerarmos Cidade como teia tecida pelas opções políticas dos cidadãos, onde explodem suas ações cotidianas em constantes tensões, tanto no campo tangível (aquilo que se materializa) quanto no campo não tangível (os significados que são forjados no jogo social), podemos refletir sobre as multiformas de intervenção, as polilógicas de ocupação, a multiplicidade desenhada cotidianamente por seus usadores. Apropriei-me desse conceito por considerá-lo potente para tratar da complexidade da relação cidadão/cidade. De acordo com Marcelo Faria, Geógrafo, Economista e parceiro da labuta cotidiana, usador é um termo cunhado por Henry Lefèbvré para designar os indivíduos que se apropriam do espaço urbano. Para ele, esse termo não equivale a usuário, posto que esse último é uma referência ao uso consentido e não apropriado do espaço urbano. Penso que, na provocação aqui lançada, ele dê conta de trazer as ambivalências dos movimentos e das relações cidadãos/cidade.
Funcionalidade é o que caracteriza os movimentos praticados por esses usadores que a criam/alteram e que são criados/alterados por ela. Por mais que tenham sido planejadas, as cidades vão sendo configuradas pelas necessidades e funcionalidades de seus usadores. Nesse jogo cotidiano, tanto abastados quanto necessitados, tanto incluídos quanto excluídos traçam seus desenhos em função de operacionalidades que atendam diretamente seus interesses.
O tema Cidade, desde os primórdios de sua história, tem importância significativa na vida de seus usadores. Entretanto, hoje, parece que estamos tomados apenas por nossas exclusivas funcionalidades e perdendo o senso de coletividade e de comunidade. Estamos nos tornando bombas demográficas, e cada um de nós - ou aqueles que consideramos iguais - é um detonador em potencial desse aparato explosivo. Não estamos discutindo as tessituras onde nos configuramos como cidade/cidadãos na perspectiva comunitária. Temos refletido pouco e agido menos ainda nessa direção. Temos degladiado muito mais como inimigos que não se aceitam nas diferenças, disputando seus espaços, do que seres diferentes na multiplicidade, que precisam conquistar respeito, direitos, para elaboração de projetos que mobilizem as comunidades para o bem comum, para a consciência de que a teia que tecemos é tecida junta, na diversidade, por isso ela é complexa. Nossa participação nesses projetos têm sido ínfima ou nenhuma.
Dentre as inúmeras questões visíveis e sentidas que emergem desses contextos, duas delas são aqui trazidas como provocação para refletirmos sobre as tais teias. Vamos a elas.
Vejamos primeiramente a movimentação para o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município do Salvador – PDDU 2007. Numa matéria publicada no A Tarde Cidades, pesquisa do Instituto Vox Populi mostrou que, em novembro daquele ano, somente 26% da população de Salvador tinha noção do que era o PDDU e que somente 0,2% contribuiu para o projeto de lei da cidade do Salvador. Esse dado revela como elites privilegiadas de usadores abastados vêm definindo a cidade de acordo com o que querem para si, alijando a massa de usadores dessas decisões sobre o movimento da cidade. Políticos mantidos por esses grupos propõem e aprovam leis que asseguram suas próprias funcionalidades, como se elas fossem demandas gerais. A cidade corre o risco de ser loteada entre esses grupos poderosos que passam a forjar verdades que se tornam hegemônicas, subjetivando as dinâmicas da vida nas cidades. Verdades do tipo ”precisamos dessas reformas, desse embelezamento que nos permitirá viver bem, com mais modernidade, como cidadãos do futuro” tornam-se paradigmas emergentes sem que haja discussão e definição desses conceitos para o coletivo.
A ocupação da rua onde moro, na Pituba, bairro de classe média da soterópolis, nesses últimos 6 anos, ilustra essa situação: numa extensão de 300m de comprimento, há 19 prédios que possuem, em média, 15 andares com 4 apartamentos cada. Se considerarmos que, nesse total de 1140 residências dispostas na vertical, existam famílias com, no mínimo 3 pessoas, e que cada uma delas tenha, 2 carros, teremos 3.420 pessoas querendo ir e vir com seus 2.280 veículos nesse trecho! Devo salientar que dois desses edifícios estão em fase de finalização. Mas até o fim de 2012 estarão abrigando novas famílias para conviverem nesse espaço. E certamente todos disputarão cada milímetro dele, buzinando, trafegando estressados, querendo acelerar de 0 a 100 km em 2 segundos, em 30 metros; estacionando sobre as calçadas, em portas de entrada e saída de veículos, em locais que estorvam todo trânsito e coisas do tipo. E todos felizes por terem adquirido seu apezinho com muito esforço (o que é louvável), mas sem querer discutir suas vidas a partir dessa ocupação. Nem vou me arvorar aqui para tratar da vida nos condomínios. Isso é para um outro ensaio!
Por onde andamos nós, usadores dessa cidade? Qual foi nossa mobilização para o PDDU? Como temos trabalhado com as decisões e os encaminhamentos de nossos representantes? É notório que estamos desinteressados, desdesejosos, destesonados com o coletivo.
Outra questão que trago é a de uma barbárie estética, invasiva, desrespeitosa das leis de propaganda nas vias urbanas, poluidora visual que demonstra bem as intenções de seu autor/autores com a cidade: danem-se e consumam meus serviços! Estou tratando da aberração promovida em bairros da soterópolis por um tal, ou uns tais “Pego Entulho. Faço Carreto - 9280 2824, 8887 8683, 8329 2449”. O autor ou os autores dessa intervenção marqueteira poluidora, deliberadamente, pintou/pintaram seu recado e telefone em sequências de postes de inúmeras ruas da cidade. É pouco provável que tenha obtido autorização de alguém. Que poder público autorizaria uma atitude dessas? Evidentemente esse “criativo” não pagou por isso, pisoteou as regras, as leis que vigoram na cidade para a propaganda nas ruas. É uma atitude de dane-se todos os usadores! Sua mensagem em nada contribui para a melhoria da qualidade de vida, para a emancipação dos cidadãos. Não é de interesse popular, pois está em bairros onde os moradores têm condições de pagar por seus serviços. Seus lucros não serão divididos ou investidos na comunidade, no social. Onde estão os poderes públicos Municipal e Estadual para impedir e punir autores de atitudes como essa? A julgar pela condução de outras políticas públicas e encaminhamentos relativos à cidade, podemos fazer ideia! Que tipo de cidade estamos nos tornando ao sermos coniventes com tais ações? E mais: ao utilizarmos esse serviço como se fosse de utilidade pública? Quem vai bancar os serviços de limpeza dessa poluição visual na já tão judiada e quase abandonada Salvador? Será que ninguém viu o pintor desses postes? Será que os usadores e usadores autoridades públicas não ficaram sabendo disso? Os telefones estão lá estampados nos postes! Vai ficar por isso mesmo? Usadores, cidadãos, contribuintes, Vereadores, Deputados, gestores do Executivo, onde estamos nós? Pior! Corremos o risco de assisti-lo numa entrevista no Fantástico, na Rede TV, como genial! Ainda teremos de ouvir que foi uma atitude arrojada, ousada, transgressora de um criativo que lançou uma campanha agressiva para seu negócio! Pouco vai se tratar de sua arbitrariedade e desrespeito ao espaço público, às leis que vigoram na cidade, ao cuidado com o espaço coletivo como possibilidade de qualidade de vida; enfim, nada será discutido e acionado em favor das regras coletivas.
Penso que devemos utilizar os telefones propagandeados nos postes para uma manifestação coletiva, ligando insistentemente para ele ou eles, exigindo que a limpeza dos postes públicos seja feita imediatamente, com verba própria, sob pena de ser processado pelo Poder Público e boicotado pelos usuários desse tipo de serviço! Devemos fazer contato também com os órgãos responsáveis para uma ação mais enérgica, fazendo valer a autoridade do coletivo da cidade.
Não proponho aqui censura à comunicação. Mas, sim, discussão e decisão nas instâncias devidas, que representam a coletividade. Aqui emerge contradição com o conceito usadores, de Lefèbvré. As construtoras daqueles empreendimentos que se efetivam pela ausência do debate, por falta de conhecimento e participação da coletividade, bem como os “criativos poluidores” visuais das vias urbanas, são também usadores. Apropriam-se do espaço urbano sem consentimento da oficialidade. Porém ela pode ser superada se entendermos que esse tipo de apropriação é umbigóide, centrada exclusivamente em seus interesses e funcionalidades. Talvez o termo usurpador seja mais adequado a esse tipo de cidadão do que usador. Sua apropriação não está na perspectiva da coletividade, e sim de uma lógica do capital que exclui e alija o coletivo.
Queremos ser essa cidade que estamos vivendo e tecendo? Queremos ser usadores/cidadãos tecidos por esse tipo de movimento?
Usadores da cidade toda, uni-vos!
Zelão
zelosmegatrend@uol.com.br
publicado no portal: http://www.caramure.com.br/artigos/usadores-da-cidade-toda-uni-vos/